13 julho 2014

Dallow and I

Há certamente várias maneiras interessantes de contar isto. Mas não consigo evitar a referência à cómoda rústica. Devia começar por falar da Dallow e dizer que, quando tudo começou, era uma rapariga de Torres Novas que tinha vindo estudar arquitetura para Lisboa. Eu conhecera-a num restaurante infame do Paço dos Negros onde depois teria tantas ideias literárias. Para abreviar, ela sabia quem era Odette de Crécy, Swann, o sabor das madalenas e como se pode ouvir, toda a vida, um choro que começou na infância. E fazia aquilo que eu teria gostado de fazer, se os constrangimentos da vida não me tivessem obrigado desde muito cedo a ganhar dinheiro. Além de tudo o mais: senti, quando ela chegou, nesse primeiro momento, uma sensação desconhecida. Era como se ela, cujo nome nem fixara, fosse nova e antiga para mim. Como se o seu rosto fosse tão incerto ou mutável que eu tivesse de o fixar continuamente, e cada alteração fisionómica fosse, de entre todas as inúmeras possibilidades, a mais perfeita. Mais tarde, quando se levantou, vi-lhe as sandálias e os tornozelos, e tive esse estremecimento tão raro em que não sabemos se foi o mundo que parou ou se alguma coisa desconhecida acordou em nós. Ontem vi o filme de vampiros de Jim Jarmusch. Não gostei excessivamente. Mas há algo de comovente nessa linhagem de seres que não morrem, nem fitam a luz do dia e que transportam consigo a memória dos mortais. E é sobretudo a forma como se reconhecem, ao pressentir a sua irredutível diferença. Tilda Swinton é obviamente um ser das trevas, com o seu corpo imaterial, translúcido, anguloso, guiando um homem exangue nas ruas estreitas da Medina de Tânger. Hoje há palavras vulgares para descrever o que eu senti por Dallow naquele restaurante. Algumas pessoas chamam-lhe química. E dizem mesmo: há química entre eles. Mas pode haver química só num?, pergunto eu, agora. Na altura desconhecia, mais do que actualmente, a neurofisiologia da emoção amorosa. Mas porque acreditamos que os centros nervosos se acendem ao mesmo tempo, e são os mesmos? E os neuromediadores, os circuitos, as sinapses, a forma como isso se espalha dentro de nós e nos surpreende. Como tudo foi aprendido com os nossos pais e tutores, os padrinhos, os amigos influentes, Marcel Proust e Thomas Mann. Que infundada, e no entanto recorrente, é a pretensão de que percebemos o que o outro sente e de que, pelo menos quando estão em causa os momentos mais significativos da vida, partilhamos com alguém, genética e epigeneticamente diferente, os mesmos estados. Dependemos dessa construção, dessa crença, para conferir esse carácter raro e incomparável aos encontros felizes. E, no entanto, duvidamos incessantemente. Os amantes, quando estão em carne viva, não param de se interrogar. Exigem a confirmação reiterada, sem a qual se angustiam e amuam. A mais pequena passagem de tempo desactualiza a confissão de amor mais credível, tornando efémera e vã o que no dia anterior fora uma jura de eternidade. O desejo é impaciente e performativo, ou não seria desejo. Sem essa reiteração, qualquer silêncio ou ausência gera a maior dor e a mais lancinante incerteza. Na altura em que conheci Dallow a minha energia ia toda para a distribuição de gás e a criação de uma rede que acompanhasse os consumos domésticos que tinham disparado. E isso tinha-me aproximado de gente que até aí desconhecia, como os criativos de design e as responsáveis do marketing e da pós produção e, através desta gente, de pintores e desenhadores, fotógrafas e ilustradoras. Rosa partilhava esse mundo e, ao mesmo tempo, o grupo quase juvenil da sua Escola, composto por gente que viera de Torres e de Tomar, de Ourém e de Constança. Dallow gostou da minha casa, sobretudo do pátio das traseiras, dos jardins dos vizinhos, das laranjeiras e do cheiro do jasmim na Primavera. Gostava de fumar no pátio, e de estudar na minha sala, no meio dos livros, durante a noite. Um dia propus-lhe que ficasse. Passava a maior parte do tempo em minha casa, tinha uma chave, tomara conta de tudo durante uma semana em que tivera de me ausentar. Ela disse que ia buscar umas roupas, ao quarto que alugara, algures, fora da cidade. Quando voltou, trazia uma cómoda. Dois colegas ajudavam numa carrinha emprestada. Dois gavetões , duas gavetas e um tampo de uma pedra escura, pesada, que na altura já devia estar partida. Vinha tudo em peças separadas, os gavetões cheios de roupa, e as gavetas de pequenos objectos embrulhados em papel de jornal, aos ombros dos rapazes, e, na parte final, aos meus ombros também. Não era particularmente bonita, nem antiga, nem boa, esta cómoda. Tinha umas pernas pequenas, sem estilo, toscas. Ficava mal em todo o lado, sobretudo no canto do quarto, quase sem mobília, onde eu dormia. Foi aí que a pousámos, cuidadosamente. Aí ficou, quando se percebeu que todas as alternativas eram piores que aquela. O tempo passou. Eu continuei a viver no mesmo andar de Campo de Ourique. Mais tarde um filho meu. Depois eu, novamente. Na minha casa quase tudo mudou. Excepto a cómoda, num canto do meu quarto. Lá está ela, de vinhático, à espera que um dia Dallow a possa vir buscar.

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