24 novembro 2013

La jolie rousse




Ficámos, a Luísa e eu, no pequeno hotel da Rue de Chevreuse, em Montparnasse. À noite, quando chegávamos, o recepcionista, um homem enorme,  perguntava onde tínhamos jantado. Rue Bréa, respondíamos. E trocávamos palavras de circunstância, antes de subir. O nosso quarto tinha uma chave enorme com a letra A estilizada. No primeiro dia explicaram-nos que o A simbolizava Alphabet Amoureux, o nome do pequeno quarto do segundo andar que tínhamos alugado.
Uma noite, o recepcionista estava acompanhado. Um homem de barba curta e cabelo encaracolado, passeava-se na pequena sala onde eram servidos os pequenos-almoços e partilhou, discretamente, a conversa habitualmente circunstancial que mantínhamos com o recepcionista. Dessa vez não tínhamos jantado.  Trocámos a refeição por um concerto na Igreja da Madeleine. O Requiem de Verdi, pela Orquestra de Paris. Eles trocaram entre si algumas palavras que não recordo.
No outro dia de manhã, antes do pequeno almoço, parei na Livraria Tschann, no Boulevard Montparnasse, a escassos minutos do nosso hotel. Um acolhedora livraria, com toldo verde e escaparates no exterior, milhares de livros amontoados com algum critério, relevo para editoras pequenas , como a Berg, onde Charlotte Delbo publicou uma carta a Louis Jouvet, o actor e encenador francês, escrita em 1951 e que Jouvet nunca leria, pois morreu nesse ano, e acabou por ser publicada em 1975, “quando todas as recordações lhe voltavam”. Mas nessa ocasião eu não conhecia ainda Delbo e a minha atenção foi sobretudo atraída pela correspondência de Simone de Beauvoir com o seu amante americano, Nelson Algren, troca que decorreu entre os anos de 1947 e 64, e que Sylvie Le Bon de Beauvoir editou, sem as cartas de Algren que, apesar de estarem na posse da filha adoptiva da Beauvoir, não puderam ser publicadas por imposição dos herdeiros de Algren. Durante  quase vinte anos, aqueles dois trocaram cartas de amor através das quais se pode conhecer melhor a multiplicidade desconcertante do Castor. O livreiro conhecia bem o livro, procurou-me a edição de bolso que eu viria a comprar e  ajudou-me quando lhe manifestei interesse em ver  a correspondência,  igualmente volumosa, de Simone de Beauvoir com Jacques Bost.  Foi já quando pagava que me apercebi de que o livreiro era afinal o homem que vira na noite anterior no Hotel. Ele reconhecera-me. Disse que visitava muitas vezes Gino, assim se chamava o recepcionista, e que mantinham uma sólida amizade ancorada no gosto mútuo da literatura e na partilha de longos serões na recepção do Hotel da Rue de Chevreuse.
Gino é um leitor esclarecido, contou ele. Traçou o seu próprio caminho, baseado em gostos peculiares, e numa verdadeira fúria de ler e de perceber, determinação essa que os anos têm depurado e fortalecido. No início, ele quase só conhecia alguma literatura popular e Alexandre Dumas, sobretudo Georges, o livro em que surge o personagem do crioulo. Mas quando gosta, ele faz interpretações profundas e originais. Tudo começou com Lisa, uma mulher que trabalhava na nossa livraria, continuou o livreiro. Lisa era uma judia cuja família fugira para o Brasil durante a segunda guerra mundial e voltara depois da Libertação. Nessa altura, ela era ainda jovem e casara com um jornalista do Le Monde. Anos depois, este homem ajudara o livreiro e um amigo, chamado Yannick, a comprar a Livraria Tschann. Lisa trabalharia na Tschann durante muitos anos. Quando era já bastante velha, saía à noite da Livraria e passava pelo Hotel da Rue de Chevreuse, de regresso a casa. Através dos vidros via Gino a ler. Uma noite bateu no vidro, empurrou a porta e disse que estava cansada e que precisava de fazer uma escala. Quando se despediu, emprestou-lhe um livro. Mais tarde disse-lhe onde trabalhava e  que podia usar a livraria como biblioteca, pagando no final do mês e de acordo com as suas disponibilidades. Foi assim que Gino leu dezenas de autores, primeiro os favoritos de Lisa, depois outros que ia descobrindo. Um dia Lisa deixou de vir e, algum tempo depois, em lugar de Lisa veio Fernando, o livreiro.
Na última noite que passámos em Paris jantámos num pequeno restaurante chamado Le Timbre, onde nos sentámos, cotovelo com cotovelo, com a jovem ruiva canadense e o seu amigo inglês, bolseiros em Paris, no exacto momento em que se apaixonavam. No fim da refeição ela levantou-se para ir a uma pequena divisão das traseiras, o que originou uma complexa movimentação de mesas e cadeiras. Quando o rapaz se voltou a sentar, cravou os olhos nas suas longas pernas e, mal ela saiu do seu campo visual, um sorriso de beatitude afivelou-se-lhe no rosto, o sorriso estulto dos homens nas fases iniciais do enamoramento.
Quando chegámos ao Hotel contei a Gino a minha ida à Livraria Tschann e o encontro com Fernando, bem como as revelações deste sobre os seus hábitos literários. E, como ele sorrisse, interroguei-o sobre os livros que estaria a ler entretanto. Gino sacou de uma mochila e começou a mostrar os livros que escolhera para aquela noite. E entre eles estava a colectânea de poesia francesa onde, entusiasmado, escolheu o poema de Guillaume Apollinaire intitulado La jolie rousse .
- Leia, por favor- pediu ele. E perante a minha reserva, começou:

Eis-me diante de todos um homem cheio de senso
Conhecendo da vida e da morte o que um vivo pode conhecer

Agora ouço-me a ler. Leio devagar, apesar de tudo com poucas hesitações.


Sede indulgentes quando nos comparardes

-Pare – ouço-o sussurrar. Pare um pouco. E Gino cumprimenta um casal que entretanto se aproximara e a quem entrega uma chave enorme, por sinal com o símbolo P. P de Paraíso, é o que penso.

Com aqueles que foram a perfeição da ordem
Nós que em toda a parte buscamos a aventura

E acabamos como dois jograis, enquanto a Luísa assiste divertida.

Eis que retorna o verão a estação violenta
E a minha juventude morreu como a primavera
Ó sol chegou o tempo da Razão ardente.


Spectres, Mes compagnons, Charlotte Delbo, Berg International, 2013
Georges, Alexandre Dumas, folio
La Jolie Rousse, Guillaume Apollinaire


Etiquetas: ,

17 novembro 2013

Wohin in Paris





O eixo franco-alemão, que dizem ser o coração da Europa tal como a conhecemos, teve momentos de efusiva proximidade. Um deles ocorreu em 11 de Junho de 1940. Após 40 dias de combates, deixando para trás 92 000 mortos e 200 000 feridos, as tropas alemãs desfilaram em Paris. A 23 de Junho, Hitler visitou Paris na companhia de Arno Breker e Albert Speer. Speer, o “nazi bom” de Nuremberga, hoje visto com indulgência, era o arquitecto do Reich, mais tarde ministro do Armamento e talvez a segunda figura do regime. Arno Breker era artista e escultor. Estudara em Paris onde conhecera Cocteau, Picasso e Renoir. Uma das suas mais emblemáticas esculturas encontrava-se à entrada da Chancelaria do Reich e representava dois daqueles rapazotes neoclássicos com muito ginásio e crânio pequeno, figurando o Partido Nazi e a Wehrmacht. Uma das fotos divulgadas na época, junto ao Trocadero, tem Hitler rigorosamente ao centro, Speer à sua direita e Arno Breker do outro lado, com a Torre Eiffel e o Campo de Marte ao fundo. Todos convenientemente uniformizados. Só ao Fuhrer é permitido mostrar as mãos e ele cruza-as à altura do ventre, uma delas empunhando uma luva branca. Tem a face dura que Erwin Blumenfeld popularizou, justapondo um crânio que brilha nos malares ao inconcebível bigode que vai de uma à outra narina. Speer está em posse de Estado-em-si, extasiado, olhando o infinito, lá para os lados de Port Debilly.  Breker é mais baixo e menos pomposo. Bivaque na cabeça, tem nos olhos a candura, a fascinação e o empenho dos compagnons de route.  É interessante que Hitler tenha escolhido estas pessoas para a foto simbólica e não os generais que entraram à frente da Wehrmacht ou ministros do Reich mais ligados à guerra, que acompanhavam a visita. A ocupação da cidade-luz, meticulosamente planeada com antecedência, foi sempre uma questão de prestígio cultural e intelectual. A visita, se acreditarmos na narração de Speer, durou pouco mais de três horas. Hitler adorou a Opera, o Panteão e o túmulo de Napoleão nos Invalides. Mostrou a maior indiferença pela Place des Vosges e pelo edifício do Louvre. Terá confidenciado a Speer que estava a realizar o sonho da sua vida.
Em Julho saía o primeiro número de Der Deutsche Wegleiter fur Paris, um Guia entre Pariscope e Time Out, com o subtítulo de Wohin in Paris, da responsabilidade do Kommandantur e inteiramente destinado aos soldados ocupantes. Quinzenal, teve tiragens de milhares de exemplares.
A leitura deste Guia, agora tornada possível através de uma edição da editora Alma, é esclarecedora: durante 4 anos de ocupação alemã, a vida quotidiana da capital francesa prosseguiu, em muitos aspectos com uma aparente normalidade. Cinemas e teatros. Muito teatro, um fenómeno difícil de explicar. Acreditamos que, nos bastidores de algumas salas, se desenrolasse o drama que Truffaut encenou no Último Metro.  Ou que o povo francês procurasse nos palcos a dignidade amputada.
Mas na maior parte das vezes era apenas a miséria do meio artístico a sobreviver com os seus novos clientes. Alguns pormenores são chocantes, como o à-vontade com que Sacha Guitry, um actor e encenador então muito popular, concede entrevistas à revista do ocupante, ou o êxito da Orquestra Filarmónica de Berlim, e do seu jovem maestro Herbert von Karajan, de quem o cronista afirma : “a imprensa francesa manifestou uma grande admiração por este jovem, sobretudo pela sua interpretação de Wagner, e prevê-lhe uma grande carreira” ( em 1969 Karajan seria chamado para dirigir a Orquestra de Paris...).
A revista engrossou e das 16 páginas iniciais viria a ter mais de 100, sobretudo à custa dos anúncios. Tudo se pode vender, afinal. Os comerciantes franceses querem promover os seus produtos. Cabarets, muitos cabarets, íntimos, caros, populares, “com charme, dança e fantasia”, “de 18h jusqu’à la fin”, com  “25 artistas, 7 quadros, 10 décors, 100 trajes e as suas 15 Ingénuas... nuas”. Fechados em Berlim, os cabarets floresciam em Paris, nesta repartição de tarefas da nova Europa. Os patrões do espectáculo pagavam para se anunciarem, como o governo francês colaboracionista pagava as despesas da Ocupação. Estas despesas eram de 400 milhões de francos por dia, a que se somavam as verbas de compensação, regulando as transacções comerciais entre industriais alemães e vendedores franceses. Os fundos eram avançados pelo Banco de França ao vendedor, enquanto o comprador alemão transferia o dinheiro para a Caixa de compensação alemã. Este dinheiro, uma espécie de crédito bancário da França, era depois livremente movimentado pelo Estado alemão.
Na segunda quinzena de Agosto de 1944, dois meses depois do desembarque aliado na Normandia, e já com a sublevação da capital em marcha, um tal K.Th. escreve na última edição do Guia, um texto melancólico e celeste sobre a retirada temporária, “por uma administração prudente”, dos cavalos de Marly da entrada dos Champs-Élysées junto à Place de Concorde: ”assistiram à Revolução, viram o jovem Napoleão desfilando em plena glória, depois o regresso silencioso dos vencidos. A vida elegante do segundo Império desenrolou-se aos seus pés, e as tropas vitoriosas de Bismarck desfilaram à sua frente. Viram partir os táxis franceses na Primeira Guerra mundial e, de novo, um quarto de século mais tarde, os soldados alemães vitoriosos pararam à sua frente para admirar a nobreza das suas formas, a impetuosidade controlada dos seus movimentos”.

Wohin in Paris? Où Sortir à Paris? 1940-1944, Le Guide du Soldat Allemand, Corinna von List e Laurent Lemire, Alma Editeur, 2013.
O III Reich Por Dentro : Memórias, Albert Speer, Livros do Brasil, 1969
Le Dernier Metro, filme, François Truffaut, 1980



Etiquetas: ,

11 novembro 2013

Um vazio em redor


Fotografia: Luís Januário


Em 1933, ano da chegada de Hitler ao poder, um homem que seria considerado como um dos maiores filósofos do século XX é eleito reitor da Universidade de Friburgo e, na cerimónia de tomada de posse, profere uma importante conferência sobre o papel da Universidade:
“Querer a essência da Universidade alemã é querer a ciência, no sentido de querer a missão histórica do povo alemão enquanto povo que se sabe ele-mesmo no seu Estado. Ciência e destino alemães devem, nesta vontade da essência, alcançar ao mesmo tempo o poder.” Sacrifico a estética e traduzo literalmente, sem coragem para tocar num hífen que seja, consciente de que tudo nesta formulação de um texto programático faz sentido. Querer, missão, essência, vontade da essência, povo ele-mesmo, no seu, alcançar o poder. É um enunciado que remete para as lições académicas com que Martin Heidegger, o professor de Filosofia, encantara as suas audiências. O filósofo alemão, nesse ano apenas um entre muitos, mas em breve, nas suas fulminantes palavras, um dos dois ou três filósofos de que a Alemanha realmente precisaria, mistura os conceitos de O Ser e o Tempo – que, num outro contexto, viriam a estar na génese do Existencialismo – com o programa nacional-socialista.
Imediatamente a seguir, de forma vertiginosa, o reitor de Friburgo aplicou decretos do Partido nazi e inovou, com alguns da sua lavra.  Antónia Grunenberg, directora de um centro de estudos da universidade de Oldenbourg e autora de um pequeno livro que a editora Payot publicou recentemente em edição de bolso, enumera algumas destas inovações: interdição das associações de estudantes judaicos; introdução da certidão de pureza ariana; auto da fé dos livros da cultura degenerada, como se fizera em Berlim; formação ideológica; treino militar; saneamento dos elementos hostis à segurança do Estado; introdução da saudação alemã.
Heidegger tinha como amigo e “camarada de combate” outro filósofo de referência, Karl Jaspers, caído em desgraça pelo facto de ser casado com uma judia.
Em Maio de 1933, Heidegger fez a última visita a Jaspers, aproveitando uma conferência que proferiu em Heidelberg e a que Jaspers assistiu, como o próprio escreveu, “sentado na primeira fila, as pernas estendidas, as mãos nos bolsos e sentindo indiferença por todas as suas palavras” exaltadas. Depois da conferência, Heidegger e Jaspers sentaram-se para uma conversa cheia de equívocos.  Jaspers interrogava a medo, sem sinceridade, e Heidegger não respondia. “Como é possível que um homem tão inculto como Hitler governe a Alemanha”? E Heidegger: “A educação não tem importância. Olhem para as suas mãos maravilhosas”.
Na casa onde eu cresci havia um armário dentro do qual uma estatueta de 25 cms de faiança das Caldas, da Fábrica de Bordalo Pinheiro, representava o Fuhrer de braços abertos proferindo um discurso presumivelmente tonitruante. Ao lado, tinha sido colocado um poema atribuído a Bertolt Brecht que dizia (cito de cor): “Isto que aí está/ esteve quase a dominar o mundo. /Mas os povos derrotaram-no. No entanto/ gostaria de não ouvir o vosso triunfante canto/ O ventre de onde isto saiu /ainda é fecundo.”  As maravilhosas mãos de Hitler estavam fechadas e, embora não tivesse passado tanto tempo assim, a  Segunda Guerra Mundial era já um acontecimento da História. O que eu não era capaz de perceber, na época, era a existência de um ventre muito mais fecundo. O que gerava intelectuais desejosos de se deixarem fascinar por homens bestiais, de discurso sincopado, visões simples e dicotómicas do mundo, peremptórios no seu irredutível maniqueísmo. Gente culta e exigente,  conhecedora das grandes correntes filosóficas, que pouco tempo antes debatia a questão do Ser e do Tempo, e da consciência do seu lugar no mundo, e renovava tópicos como a angústia, a liberdade, a culpa e o destino, acreditando estar a recomeçar a Filosofia. Gente desta deixa-se encantar pelas mãos maravilhosas de um tosco defensor da superioridade racial de um grupo étnico centro-europeu e da necessidade de esmagamento da “conspiração judaica internacional”.
Nesse ano de 1933 milhares de jovens intelectuais alemães que pouco tempo antes se sentavam no mesmo banco dos seus colegas judeus e, nos cafés, debatiam a revolução mundial e o problema do bem e do mal, calaram-se ou começaram a escrever ou a declamar frases ambíguas que justificavam a prisão, o afastamento, o despedimento, o exílio, ou a eliminação física daqueles que eram seus amigos, colegas e/ou interlocutores regulares até à semana anterior. Hannah Arendt, pois que é dela que esta crónica no fundo trata, dizia na altura que o problema principal não era “o que faziam os inimigos mas o que  faziam os amigos”. E concluía lembrando que se assistia a uma vaga de uniformização que não resultava do terror e deixava, em torno de pessoas como ela, um lugar vazio.
Estes filósofos desapareceram do campo da filosofia, sugados pelo ventre fecundo da traição dos espíritos intelectuais. Ajudaram os nazis a executar um projecto sinistro. Tiveram o treino militar que almejavam. Foram mobilizados. Ocuparam a Europa, que, à excepção da Inglaterra, se rendeu com surpreendente facilidade. Caminharam nas frentes geladas da Rússia. Viram passar os comboios carregados de gente para os campos de concentração, onde se amontoavam, como gado, colegas da universidade. Cheiraram a carne queimada dos crematórios. Morreram. Ou sobreviveram e, depois de alguns anos de uma depuração benevolente, ajudaram a reconstruir o Mundo que somos, num silêncio que durou 50 anos. Eles estão no meio de nós.
Deixaram uma grande lição esquecida, que as palavras de Arendt relembram a quem as quiser recordar: nos tempos de transformação rápida do mundo, os amigos desaparecem, sugados pelo brilho do vencedor e fica um grande vazio à volta dos que resistem, ou foram marcados com a estrela infamante.


Hannah Arendt et Martin Heidegger, Antónia Grunenberg, Petite Bibliothèque Payot, 2012
Hannah Arendt, filme de Margareth von Trotta, 2012



[ Crónica do Luís Januário publicada no LIV Jornal i a 9 Novembro 2013 ]





Etiquetas: ,

04 novembro 2013

O Misantropo ou uma raiva terrível


Fotografia: Luís Januário
  
Terça-feira. Às nove da noite chove na festa académica. Uma escorrência suspeita flui ao longo da rua Tenente Valadim, ignora o semáforo que agora assinala os segundos decrescentes, mistura-se com o trânsito que desce da Praça para a Avenida. Nas escadas do TAGV amontoam-se grupos de estudantes. Estendem as capas para uma refeição tardia. Cada um tem uma caixa de cartão da McDonald’s. Como congressistas em grandes reuniões internacionais, partilham a mostarda e a cebola. Os miasmas da happy meal cruzam a rua, serpenteiam pelo Cartola e derramam-se nas pedras da Praça. Calçada à portuguesa. Aí os grupos dispõem-se de acordo com a proveniência geográfica, o ano de curso, a taxa de alcoolemia ou a zona de habitação: o grupo da Madeira, com a caloira Viviana que desde setembro está a fazer sucesso na página FB da secção Filatélica da AAC, balançando as tranças loiras; o 3º ano de Farmácia, agora em silêncio, bebendo pequenos goles de uma decocção de dente-de-leão; a turma da Solum entoando um hino infantil, do filme Schrek III. Dezenas de pessoas, quase todas deitadas nas pedras frias. Alguns caídos, sem amparo, com saudades das famílias, das cerejas, das Amarelas e das Verdes, provisoriamente encerradas para sempre.  Aqui e ali, na Praça, a silhueta de um carro de compras do Belmiro. Enormes, do tempo dos consumos excessivos, de polipropileno virgem, vermelho, rodas travadas. Os carros vieram do Coimbra Shopping, contornaram o Estádio, subiram os Combatentes, arrastaram-se ao longo do Botânico até aos Arcos, onde uma patrulha da Polícia Municipal fez vista grossa, foram guardados nos parques anexos às velhas faculdades da Alta e depois cheios de garrafas de litro e meio com aqueles líquidos de cores orgânicas, entre pilhas de cerveja Sagres, coca colas e shots caseiros de vodka adulterado. Os carros do supermercado fizeram a Latada até ao Parque, foram-se esvaziando e estão agora cheios de barulho metálico e lixo, latas vazias e vidros. Círculos heróicos atiraram alguns carros ao rio, ou atiraram-se ao rio com os carros, espantando as gaivotas que, como um estudo premiado demonstrou, voaram de Dublin ou do Mar Egeu até ao Mondego e estremecem no Parque da Canção, afeiçoadas à Queima, à Latada e à ETAR do Choupal.
Junto à Sereia, dois mini-carros rápidos dos Serviços recolhem lixo. Como as crianças aprendem desde que há aulas de Matemática, se os carros apanham 2 decâmetros cúbicos de lixo em meia hora e os estudantes produzem  3,5 acres-pés  por hora, os carros que agora circulam junto à Sereia só limparão a Praça lá para o Natal, ou no dia 30, às 17:30h, dizem os finalistas de engenharia.
Filinto: Tendes má opinião da natureza humana
Alceste: Sim, ganhei por ela uma raiva terrível …
Um indizível ódio diz, no filme Alceste à bicyclette, o actor que ensaia O Misantropo, a peça de Molière, com um amigo que se autoexilou na ilha de Ré, agora ligada a La Rochelle por uma ponte de 3 km, a mais comprida de França.
Quinta-feira. Noite amena. Nas escadas do TAGV, as mesmas capas. O mesmo cheiro penetrante das cebolas com que o McDonald’s confecciona agora os hamburgers.  O mesmo derramamento de líquidos fermentados. Os mesmos grupos dispersos pela Praça. Mas, olhando com atenção, a coreografia é diferente. Há um grande ajuntamento ostentando um impecável equipamento desportivo. Outro grita, cadenciadamente, um estribilho de combate. Caminhando entre estes grupos tem-se a sensação de que esperam algo. A chegada das famílias, as chuvas do outono, a libertação dos dirigentes presos, a afixação das pautas, o fim das propinas, a actuação de uma banda funk, uma carga da polícia, o Papa Francisco. Parece aproximar-se um acontecimento que não chegará a acontecer.
Filinto: Todos, pobres mortais?
Alceste: Odeio todos os homens. Uns por serem perversos e malévolos.
 E outros por aceitarem a maldade.
Sábado. Os estudantes desapareceram. À noite, as escadas do TAGV estão limpas e vazias. Ninguém nas ruas. Da praça 8 de Maio até ao D. Dinis, no Quebra-Costas e na Rua das Fangas, na Couraça e na Portagem, não há vivalma. A Praça está deserta como esteve à tarde, quando alguns apelaram às vidas que queriam de regresso. Não veio ninguém. Não se vê ninguém. As pedras brilham ao néon, pegajosas se alguém as pisasse. Mas ninguém as pisa. Kapuscinski, em 1975, dizia que este estranho fenómeno acontecia em Luanda e por todo o país. Parava a guerra, no dia de sábado. De um lado e do outro desapareciam os combatentes. Não estavam em casa nem nos restaurantes, nem nos clubes, nem nos cafés. Não estavam nos cinemas, nem na praia. Nem nas barreiras, nem no recrutamento. Tinham desaparecido. Nenhum conflito, nenhuma agressão, nenhuma comemoração. Nada. Ninguém. Na tela do TAGV, perante uma plateia composta, Alceste atravessa de bicicleta os campos alagados da ilha de Ré, com o traje dos gentis-homens da corte do rei Luís XIV, pensando em Celimena
Morbleu! Faut-il que je vous aime?
e pedala para o pátio da casa onde se reúnem actores, empresários e os outros elementos da companhia. Aí chegado, irrompe entre os convivas e quando estes se viram para o escutar, como os bandos na Praça se aquietavam para uma revelação que não chegou, recita-lhes, com a  bela voz que os palcos de Paris não voltarão a ouvir:

Já que vós, humanos, viveis como lobos,
Enquanto for vivo, traidores, não me tereis convosco.

Alceste à Bicyclette, um filme de Philippe Le Guay, 2013
O Misantropo, trad. Luís Miguel Cintra, editorial estampa, 1973 ou trad. Vasco Graça Moura, Bertrand, 2006

´

Crónica de Luís Januário, publicada no LIV Jornal i de 2 de Novembro de 2013


 

Etiquetas: ,