31 dezembro 2006

Não misteriano, funcionalista



Hoje de manhã pareceu-me poder responder à pergunta de Nigel (1975): Como é ser morcego? Pelo menos como Lodge (2001) o fez. Isso faz de mim um não-misteriano. Por outro lado, como acredito que a consciência é inseparável dos processos cerebrais sou de certo modo um funcionalista. Ainda não sei se a consciência é uma ilusão. Mas só vou no capítulo III.


( Jeff Wall, O contador de histórias.
Susan Blackmore, Consciousness, Oxford University Press, 2005 www.oup.co.uk/vsi)

30 dezembro 2006

Em pequenas doses



Nos últimos tempos os amigos acham-na com bom aspecto. Anda a tomar um antigo depressivo, confirma a quem lhe pergunta.


(Sam Samore)

Um dia grande para a democracia



As forças do bem executaram Saddam Hussein, um malfeitor. O Presidente Bush comentou que era um passo importante para a democratização do Iraque. Foi mais ou menos o que disse o soviete de Petrograd, depois do assassinato do czar e da família real.
Ouvi também as reacções de algumas personalidades. Adriano Moreira justificou a condenação enumerando os crimes de Saddam. Tudo o que disse se aplicava ao presidente dos Estados Unidos. Depois demarcou-se da sentença de morte em nome da tradição cultural europeia. Adriano Moreira é das poucas pessoas da ribalta mediática com posições equilibradas sobre política internacional. A seguir falaram José Lamego, um constitucionalista iraquiano, e Teresa de Sousa, uma neo-conversa, sempre muito bem informada e mal disposta, para quem todo o mal do mundo parece vir dos que perturbam a pax americana, o normal funcionamento do mercado, da bolsa, do Banco Mundial e das Forças Armadas Americanas incluindo a Guarda Costeira. Parece que o problema agora, no Iraque, é a guerra civil, a luta assassina entre sunitas e chiitas. Não temos nada com isso. Já lá deixámos empresas petrolíferas sérias, construção civil, ajuda económica, uma constituição. Podemos aproveitar e vir embora. Pode ser que não se note.


(Boris Mikhailov)

28 dezembro 2006

Feliz ano novo

Aos bloggers com quem, de uma maneira ou outra, me cruzei durante este ano:


Ana Luísa Teixeira
Bruno Sena Martins
Carla Carvalho aka Elsinore
Carlos Santos
Cristina Santos
Cláudia Santos Silva
Daniel Oliveira
Henrique Carmona da Mota
Elisabete Figueiredo
Eduardo Pitta
Fátima Rolo Duarte
Fernanda Câncio
Francisco José Viegas
Joaquim Paulo Nogueira
José Pacheco Pereira
José Paulo Andrade
Maria da Conceição
Miguel Cardina
Fernando Gouveia
Filipe Nunes Vicente
Francisco Trigo de Abreu
Luís Cunha
Lutz Brückelmann
Nuno Guerreiro
Sarah Adamopoulos
Sandra Elisabete
Susana Brito
Tiago Barbosa Ribeiro
Pedro Mexia
Pedro Lago
Raquel Costa
Rui Bebiano
Rui Tavares
Sandra Costa

e aos outros que li e com quem aprendi, me diverti ou discordei,

e aos que me leram nA Natureza do Mal.

2006: o mais e o menos

O bigode do ano



Ali Smith

Os livros do ano

Os Anéis de Saturno, Sebald
Istanbul: Memories of a City, Orhan Pamuk
Tres Deseos, Amalia Bautista
O Livro do Meio, Maria Velho da Costa e Armando Silva Carvalho
O Animal Moribundo, Philip Roth

A não-edição do ano


A biografia de Alexandre O'Neill por Maria Antónia Oliveira, pela Dom Quixote


A exposição do Ano



Andrés Serrano em Vitoria

O avô do ano

Dick Cheney, Tozé Costa Afonso

O filme do ano

Le temps qui reste,
Volver, Almodovar
Match Point, W.Allen
A lula e a Baleia
Little Miss Sunshine



O concerto do Ano


Cristobal Repetto; Ludovico Einaudi e Ballaké Sissoko, Sons em Trânsito, Aveiro


O holding do ano

Hard Rock Café pela tribo índia da Louisiana


O momento mais sexy do ano

Sharon Stone, na entrega do Prémio Nobel da Paz a Muhammad Yunus

Penélope Cruz a despachar o javardo, em Volver.


O professor de Educação Física do Ano
Gonçalo M. Tavares


O episódio mais lamentável do ano


As fotos de Susan Sontag pela Liebowitz (A Photographer's Life)


A ansiosidade do ano

O processo do processo de Bolonha

O pack do ano

John Cassavetes


O CD do ano

Putain de Toi, Hommage a Georges Brassens (varia)
Chico (Carioca) e Caetano (Cê)
Susanna and the magical orchestra, Melody Mountain
Tom Waits, Orphans: Brawlers, Bawlers and Bastards
Stuart A. Staples, Leaving Songs


A revelação do ano

O Papa em Ratisbona

A Ignomínia do Ano

O comportamento da esquerda no episódio dos cartoons da Dinamarca
A continuação do sequestro de Ingrid Betancourt pela guerrilha narco marxista colombiana
A deslocação ao Congresso de Teerão do senhor Nuno Rogeiro (ler a propósito Rui Bebiano, A voz do silêncio)
A continuação de Georges W. Bush na presidência dos USA
O processo Apito Dourado e as suas sequelas
A actividade provocatória do Campos

O espectáculo teatral do ano

Ubus, no Carlos Alberto

A moca do ano



Nespresso


A editora mais ilustrarreica do ano

Guerra e Paz


O clip do ano

Gnarls Barkley

Os pesadelos de 2007



O espectáculo da Igreja Católica no referendum da despenalização do aborto.
A entrega do Rivoli a Filipe La Féria. Carlos Quintas no papel de Sá Carneiro.
A suivre)

(com Rosaarosa em altavoz)

26 dezembro 2006

O debate continua

O Administrador apostólico da diocese do Porto comparou o aborto ao abandono de nasciturnos nas rodas dos mosteiros. Quando o Administrador fala aos fiéis nas cerimónias da diocese é, para eles, uma autoridade. Quando fala do aborto, num contexto de consulta referendária nacional, é o senhor João Miranda. A opinião do senhor João Miranda é tão respeitável como a de qualquer outro cidadão. Deve ser submetida aos mesmos critérios de apreciação e valoração. Não devia ter mais eco que a opinião do senhor Horácio Rufino, meu vizinho do 19, que acha que a roda dos mosteiros também rodava para fora. Madalena Simas, da associação Mulheres na Acção, corrigiu o senhor Miranda, lembrando-lhe que a exposição em lugares públicos de um recém-nascido era um acto de misericórdia. Vale mais uma mulher na acção que um homem na peroração.

(sobre aspectos ontogenéticos e filogenéticos do debate ler Henrique no Alcatruz)

Campos elísios



No teu limbo infantilóide
É que devia parar-se
O implante pessoano
Da Ode Marítima
O volante que dentro de mim
Não abranda o giro

Eh lá Eh lá Eh Eh Eh Eh Eh Eh lá ô


(foto de Lee Fiedlander, Sandra Fisher e R.B. Kitay)

Não lhe chega ser primeiro-ministro



Ia de carro quando uma das rádios passava a alocução natalícia do primeiro-ministro, em versão reduzida. Se é tradição, não me lembro. Julgava que no Natal falava o clero. O texto era absolutamente desprovido de interesse. Como Sócrates é o primeiro-ministro de todos os portugueses, o conteúdo das suas mensagens de Natal tem de ser assim. O objectivo é reforçar nos ouvintes um condicionamento natalício que se presume estar democraticamente difundido e conduzir às zonas de paz, amor e rabanadas em que todos somos irmãs e irmãos. O que era novidade, no discurso de Sócrates, era a tonalidade e a altura da voz, o ênfase, a duração das pausas. Como se o homem tivesse feito um curso rápido com o Super Psi Sá. A ambição de Sócrates é desmedida e o êxito que lhe atribuem está a fazer-lhe mal. O homem já não quer que votemos nele. Quer engatar-nos. Se o regime fosse monárquico, ou na Presidência da República estivesse uma mulher a sério, ele podia ter a vantagem de ouvir o comentário que, na Rainha de Stephen Frears, Isabel II fez a Blair :
- Não se excite tanto com a popularidade que a procissão ainda vai no adro.

(Manet, 1882)

24 dezembro 2006

É a véspera de Natal



No ano de 1992 eu trabalhava num país rico e só pude viajar na véspera de Natal. Apesar de ter comprado o bilhete mais caro, quando cheguei ao check-in o mostrador avisava que o voo tinha três horas de atraso. Não havia explicações, para lá do nevoeiro em Londres. Eu sabia pelo Rodrigo, um piloto amigo, que o nevoeiro em Londres é uma piada de baixa extracção, usada pelo pessoal de terra para não dar explicações aos passageiros que consideram desprovidos de capacidade de reclamação. Era o caso. Os meus companheiros eram emigrantes falando uma língua que se assemelha a um crioulo do latim, com excesso de bagagem, desconhecimento dos direitos, uma postura reverencial perante o país de acolhimento e a fé de que tudo acabará por se resolver a contento. Tendo sido distribuída uma senha de alimentação para um restaurante de um Hall distante, os passageiros do meu voo dispersaram. Duas horas depois o voo tinha um novo horário previsto. Não havia quase ninguém junto ao check-in. Uma funcionária recomendou-me calma e disse que se quisesse fazer uma reclamação me devia dirigir a um balcão do Hall 1. A caminho, reparei que as poucas lojas abertas desciam os estores, os empregados de limpeza recolhiam os sacos de lixo e nos ecrãs do aeroporto só restava a indicação do meu voo. No Hall 1 o gabinete da companhia em questão estava encerrado, com a indicação de que reabriria no dia 26. Pareceu-me ver alguém no interior e bati nos vidros. Um homem saiu e apagou a última luz. Como lhe manifestasse a minha preocupação ele disse-me, na língua em que falava a maior parte da gente daquele país:
- Estou desolado senhor, mas é a véspera de Natal.
Lembrei-me da senha que me dava direito a uma refeição no restaurante do Hall 4 e dirigi-me para lá. Os corredores estavam desertos e as lojas encerradas. Algumas tinham colocado no exterior um aviso que parecia ter tido bom acolhimento entre os lojistas e dizia:
- Boas Festas. Um Natal Feliz. Nós voltamos depois do Natal.
O Restaurante estava no segundo andar do Hall 4 e tinha duas salas. À entrada da primeira tinham escrito à mão, na língua do país, numa folha colocada sobre o menu:
“Fechado”.
Na segunda sala havia luz e entrei. Numa mesa um homem comia com uma miúda, o que me tranquilizou. Uma empregada aproximou-se e disse que estava desolada e que o restaurante tinha encerrado. Tinham tido um jantar para os passageiros de um voo em atraso e, infelizmente senhor, já não havia comida.
Retorqui que se estava precisamente a referir ao meu voo, eu fazia parte desse grupo e eram horas de jantar, embora não parecesse. Quando acabei esta frase olhei em volta. Pela vidraça panorâmica do restaurante via-se a pista. Não havia movimento de aviões. Não havia luzes de sinalização.
O homem que jantava acompanhado da filha levantou-se. Reparei que coxeava. Perguntei-lhe se era um dos passageiros do meu voo. Ele disse que tinha vindo despedir-se de familiares e que acreditava que estes já teriam partido. Entretanto, a empregada despira a farda e pedia para sairmos. Boas Festas, acho que disse.
Voltei ao meu balcão. Antes de olhar já sabia que a hora do voo tinha sido mais uma vez alterada. Não havia ninguém. Num balcão em frente vi um homem de uniforme a mexer nuns impressos. Corri para ele e perguntei-lhe o que se passava, para onde tinham ido todos. Ele quase não se mexeu. - É a véspera de Natal, senhor – julguei ouvir-lhe. -Mas eu tenho um bilhete para casa, gritei-lhe. Tenho de voltar para casa, gritei-lhe.
Ele parou, olhou-me como se me reconhecesse e disse:
- Ao que julgo saber o senhor não tem casa. É pelo menos a informação que temos.
Acreditem. Na língua daquele país esta frase é muito impressionante.

(foto de Jeff Wall)

22 dezembro 2006

21 dezembro 2006

O conceito.

O conceito era excelente. Ja o resultado foi decepcionante. Este post é fraquinho mas o conceito era bom.

A vinganca de Sansão

Quando ela cortou o cabelo ele deixou de a amar.

Idade média



Quem trava a roda da fortuna?
A Dama Fortuna
Metade monstro metade mulher.
Como faz para a roda não andar?
Usa um cravo, um prego,
uma cavilha.

Quem move a roda da fortuna?
Que diferenca faz estar na mo de cima
ou na mo de baixo
se em todas as estacoes
se é triturado?

Férias

20 dezembro 2006

Fragmentos e detalhes

19 dezembro 2006

Fragmentos e detalhes, #1

18 dezembro 2006

Traços, a sombra de um rasto, etc., ou vice-versa

17 dezembro 2006

Uma mulher do Mal: Carolina Salgado

Os que falam dela na rádio, nos jornais ( eu não vejo televisão) não conseguem dizer o seu nome. Carlos Magno, na antena Um, chamou-lhe dona Carolina. Podia ver-se a boquinha esticada no ênfase púdico. Como não se chama dona à vereadora do PP nem à irmã, que são as únicas senhoras que me vêm à cabeça a esta hora dominical, a distinção da forma de tratamento deve querer dizer alguma coisa. Eles explicam logo a seguir. A mulher, esta mulher, era uma alternadeira. Uma alternadeira é uma pessoa que vende a sua força de trabalho na praça da prostituição.(é paleio marxista, mas se conhecerem melhor, façam favor de propor). Como o mercado é flutuante, o emprego é precário. O local de trabalho são bares e clubes, alimentados por homens que precisam de divertimento. Trabalham muito, fazem andar a roda das nossas existências e precisam de divertimento. Sempre foi assim. É a mais velha profissão do mundo. E sempre houve poderosos que se apaixonaram pelas putas, porque tão antigo como elas é o amor e a necessidade de amor dos homens, mesmo quando são poderosos e usam as mulheres como bens de consumo descartáveis. De vez em quando uma mulher sai do bordel para a corte. Alguns poderosos não gostam. Acham mal. É o início da desordem, o princípio da catástrofe. As coisas não devem ser mudadas de lugar. O bordel não deve ser confundido com o sítio das outras mulheres, as donas compassivas, as nossas mulheres, que visitam as putas nos lares de abrigo, lhes ensinam a virtude, o bom caminho e se for preciso lhes dão ajuda de berço. Esta mulher chama-se Carolina Salgado. Viveu com os poderosos, conhece-os, aprendeu-lhes as manhas, joga o jogo deles. Há quem não queira ouvir a história. Percebe-se. É Natal, e como disse o Roth, a filha do senador Lieberman deve ver televisão descansada.

15 dezembro 2006

Mas


Obrigado a utilizar, ignorante como o personagem de Molière, uma competência metalinguística, tenho resistido à piada TLEBS. Não percebo a sanha que se levantou pela revogação da Portaria 22 664 de 22 de Abril de 1967, uma antiguidade anterior a Maio de 68, como qualquer não especialista pode verificar. Mas passei estes dias receando que um modificador do nome apositivo, uma referência deítica, uma parassíntese, ou mesmo um verbo copulativo, uma conjunção conjuntiva copulativa, um modificador do nome apositivo, uma meronímia exagerada, um acto ilocutório directivo perturbassem os meus dias tão serenos. Não esperava era ser atingido por uma preposição. Para uma coisa destas devia estar preparado.


(foto de Bonirre, retirada de pescadanº5)

14 dezembro 2006

sms

Anos Inquietos vigorosamente ultrapassado por Eu, Criolina que já vai para a 2ª edição. Vocês desprezaram o sexo, o futebol e a construção civil e depois é isto: vão-se abaixo na 1ª eliminatória, tá visto...

(de Rosaarosa)


(André Bonirre, 3ª imagem de Marienbad, em pescada nº5)

Acordar (2)

Está aqui, na prateleira do Jumbo, o terras do demo com o aquiliano sobrolho façanhudo a olhar para mim. Que violência ao acordar.

(de Rosaarosa)

Acordar (1)



Calou-se a música os pais choram os filhos. Os assassinos preparam os venenos os mandantes dormem procuram os justos um ar que se respire. As putas e uns estudantes em contra mão. No interrogatório os presos a perderem dentes e direitos. O sangue a escorrer na tromba dos insectos da noite. À noite. À noite. À noite o único brilho é o dos homens do lixo.À noite um carreiro de congressistas da Insídia prepara um holocausto mais final. À noite a febre o pus a necrose.
De manhã há sol, pão quente e o leite que roubamos aos outros animais. Lavamo-nos, estamos prontos para o dia.

(foto retirada de Kontratempos, Tiago Barbosa Ribeiro)

13 dezembro 2006

O aborto


Global and regional estimates of annual incidence of unsafe abortion, 2000


A minha posição relativamente ao aborto é a mesma da Organização Mundial de Saúde, do Comité das Nações Unidas sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, nomeadamente do exposto na recomendação 24, do Programa de Acção da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento das Nações Unidas(parágrafo 8.25):


Uso combinado de Mifepristona e Misopristol, cuidados post-aborto por técnicos especializados em processos de evacuação uterina e analgesia, prevenção da infecção, tratamento de complicações, referência a serviços Saúde reprodutiva e aconselhamento contracepcional e fornecimento de contraceptivos, cuidados de seguimento.


World Health Organization. Safe abortion: technical and policy guidance for health systems. Geneva: World Health Organization, 2003
Unsafe abortion: the preventable pandemic, The Lancet, Novembro de 2006

Publicidade

Quando sentimos que a nossa comunicação se estava a deteriorar mudámos para o nove seis.

12 dezembro 2006

O melhor blog



O blog Geração Rasca promoveu uma eleição de blogs e bloggers. Obtive um décimo lugar, que me desvanece, na categoria do melhor blog masculino. Mas eu trocava-o por uma citação, uma só que fosse, para o melhor blog feminino.

(foto de Bonirre retirada da pescada nº5)

We love children



Costumo perdoar tudo ao meu blogger favorito, um dos meus poetas. Mas pôr o Cohen, atingido de senilidade transcendental, a fazer a campanha da donas Zitas e das manas Avillez é demais para mim. Ao Pedro só posso dizer: Ay, ay, ay. Ay,ay,ay (citação de Take this waltz).

Ateu



Uma vez, há muito tempo, sentia-me infeliz e sozinho numa cidade italiana. Tinha passado a noite com uma mulher que era linda, inteligente e sensível. Durante todo o tempo ela tremeu e não fazia frio. Estávamos vestidos. O quarto parecia uma cela e a cama um catre. Talvez ela me tivesse beijado. A noite era perfeita e para não quebrar essa perfeição não me mexi, não tirei as botas, vigiei-lhe sempre o tremor e a respiração. De manhã separámo-nos. À tarde cruzei-me com ela numa praça da cidade. Ia pelo braço de um rapaz italiano, menos romântico e mais activo. Ao anoitecer entrei numa igreja onde tinham espalhado incenso e um coro de vozes brancas entoava um miserere. Foi aí que me senti bem, infeliz e sozinho.
Alguns anos depois, numa outra cidade, ia todas as sextas feiras à capela de um Colégio. Saía do trabalho, percorria as ruas estreitas pedalando uma bicicleta. Chegava exausto, sentava-me numa cadeira em frente do coro, cantava os salmos. Era mais pobre do que hoje mas deixava sempre algum dinheiro à passagem da colecta. Era bom que deus tivesse existido para os construtores daquele templos, os homens que tinham escrito aqueles salmos, os rapazes que os cantavam. A mim bastava-me o cansaço físico do trabalho e do ciclismo, o jejum, a segurança de que não haveria homilia nem proselitismo. Em Jerusalém, na Igreja do Santo Sepulcro fiz os últimos passos da cruz atrás de um padre copta e de dois oficiais da igreja ortodoxa grega e católica, e deixei um bilhete numa fenda do Kosel, que o Shechinah nunca abandonou. Em Goa, relapso, acendi velas em igrejas desertas da cidade velha, e recolhi-me num templo hindu, pensando no meu pai, que perdera a fé em criança, ao colo de um velho padre de Viseu. Inspirado no Lodge de Terapia, fiz o caminho francês até ao Obradoiro. Em todos estes sítios me senti bem. O meu corpo e a minha consciência não tinham fronteiras e eu era daquele lugar e de todos os lugares, daquele tempo e do tempo infinito. Se havia deus não falava a minha língua, nem a sua aparição desagradável me pareceu eminente.

(foto de Dr. Gica, A invenção de Morel, roubada a pescada nº5)

11 dezembro 2006


(para a asl, do caixote de fotografias)

10 dezembro 2006

Lido no fim-de-semana

(...)
Sem totem que nos proteja, entrar de rompante num caixote de fotografias afoga-nos em sentimentos melancólicos, desvelos ou dor. Eu fui isto? Isto não é a ideia que eu tenho sobre o que eu fui. E, no entanto, isto está ali imóvel e aquele esgar era eu, mais aquele vestido infeliz, mais aquele ex-amigo erradicado que, não se fazendo como Estaline, há-de ficar ali desbragadamente a rir o resto da vida.

Ou em oposição: quem me arrancou este riso neste ano tão grave? Éramos felizes quando achávamos que éramos infelizes? Não existe a verdade excepcional das fotografias (aquilo existiu, mas no momento seguinte passou-se outra coisa diferente que não foi fotografada) mas a verdade parcelar das fotografias é estonteante quando se mete com a verdade parcelar da memória.


Ana Sá Lopes (Um caixote de fotografias)





Chego a uma casa nova e trago os velhos fantasmas.
Os visíveis, inexpugnáveis. Os que não descansam.
Mudo a digamos vida repartida em móveis e estantes.
Os meus solícitos avisam que estou a prazo.
Que sempre que me habituo desvalorizo o património.
Os caixotes são deles território como o céu e as paredes.
Se não deixei a sombra não expulsei também esta companhia.
Eles são inquilinos, vitalícios como o medo.
Uma vita nuova exige novíssimos tormentos.
E esta é apenas vida velha em divisões mais amplas.
Quis que não viesse alguma carga desnecessária, memórias e bibelôs.
Veio tudo, espectral e sem fadiga.
Veio dividido em espelhos e duendes que nunca tive.
Veio nos amuletos sem efeito, nas fotos onde já não apareço.
Vidrinhos que cortam no escuro.
Hologramas meus amigos faz décadas.
Cada objecto que inauguro ganha o seu deus malévolo.
Que reina na casa toda como os lares nos romanos.
Eles sabem que me venceram.
É altura mais que doméstica para me juntar a eles



Pedro Mexia, no excelente Mil Folhas dedicado a Mário Cesariny, com o poema A um rato morto encontrado num parque em roda-cabeçalho e o texto em que Manuel Gusmão explica a filiação de You are welcome to Elsinore em Cesário Verde.

Animal Farm

No Júlio de Matos, um grupo de 12 pacientes leva à cena Animal Farm, de George Orwell, aquele moço que tem com o seu nome a praça mais feia de Barcelona. Têm ajuda de dois actores semi-profissionais e de dez colaboradores que fazem de ponto. Quase um ponto por actor. Parece que os doentes mentais tendem a desorbitar do seu papel e enveredam facilmente por caminhos que os saudáveis não aprovam.

(enviado por rosaarosa)

No posto da gasolina

Havia, de um lado, cinco automóveis à espera para encherem os depósitos de gasolina e, na outra bomba, um só que parecia intocável no seu isolamento. Obviamente coloquei-me por detrás deste. Foi quando me apercebi que era uma carrinha funerária, com o palanque onde se coloca a urna por agora vazio, à espera da próxima caixa. Todos preferiam esperar mais tempo do que colocar-se atrás de uma transportadora de cadáveres. O condutor, vendo-se tão sózinho, demorou muito tempo a pagar, a pedir facturas e tudo o mais que se pode fazer num posto de gasolina. Era o único, naquele começo de dia de trabalho, que não tinha pressa. E o cliente que o poderia esperar também não tinha pressa, com a eternidade toda à sua frente. Tudo isto que é simples, imediato e facilmente traduzível em palavras é, no entanto, uma enorme barreira para quem está submerso em prescrições de polícias da mente. Por que será que os psiquiatras do século XXI continuam a agir como se o mal-estar estivesse sempre do lado da explosão, do levitar acima da humana condição de répteis que interromperam a sua evolução na escala de aspirantes a não importa o quê ?

(enviado por rosaarosa)

What would you say at the gates of heaven?



Richard Dawkins,the scientist, author and campaigning atheist answers your questions.
Aqui
e aqui e aqui.

Prendam todas as mulheres

Este blog não vai comentar a iniciativa governamental de perguntar aos portugueses se entendem que as mulheres que engravidaram contra a sua vontade e não conhecem, ou não têm acesso, à mifepristona e às prostaglandinas, devem ser perseguidas pela polícia, detidas, submetidas a exames periciais nos Institutos de Medicina-Legal, sujeitas a processo crime, levadas a Tribunal e condenadas a prisão ou aos campos de reabilitação da Zita Seabra post menopausa.
O debate é instrutivo, embora não vá agora contar com o geneticista que em 1998 projectava filmes sobre fetos aos gritos.
Mas nós aqui temos outras estradas para percorrer. A nossa admiração para quem conserva ânimo para combater os ungidos de deus.

As sete maravilhas



Castelo de Almourol, Torre dos Clérigos, Paço de Vila Viçosa…
O Freitas do Amaral post hérnia, a Isabel Pires de Lima, o Pedro Dias, sei lá, estão a propor aos portugueses, aos europeus, que elejam, por mail, sms, e em breve por urna, as sete maravilhas do património.
Convento de Mafra, a fortaleza de Sagres, a Torre de Belém…
Lembro-me daquela importantíssima praça de Viseu, com a Sé, o Museu Grão Vasco antes do deslumbramento, a Igreja da Misericórdia, a livraria maoísta Que fazer e, com um pouco de sorte, a minha casa ao fundo.
Lembro-me da Sé Velha, do Quebra-Costas, da loja do avô, da Torre de Almedina e do Quim Machado.
Lembro-me de tanta coisa digna de ser eleita para os sete mais do património.
Tanto esquecimento. Tanta injustiça.

07 dezembro 2006

Libertação

O governo cubano libertou, por motivos de saúde, o dirigente Fidel Castro.

06 dezembro 2006

Percepções e realidades de PSL ou história política recente entre DB e JS


Foto: DrGica

Dezembro

De manhã caminho neste tempo dual. Ora o céu limpido de dezembro, ora a indesmentível ameaça das nuvens. Nunca entenderei os sinais confiáveis nem saberei ler os preságios. Não devia ouvir a voz que desmente a promessa das palavras.

Indiscernibilidade dos distinguíveis

Devia falar de Paulo Portas, o patriota, o fragateiro, líder da direita portuguesa, a quem um canal de televisão recupera para a política activa. Acusado de enquanto ministro da Defesa ter entregue à CIA, de Bush e Rumsfeld, o espaço aéreo português, recusou ser ouvido pela Comissão especial do Parlamento Europeu, dirigida por um deputado social-democrata.
O actual ministro da Defesa é diferente de Portas. Desde Leibniz que o sabemos. No Novo Ensaio sobre o Entendimento Humano, Leibniz explicou que duas entidades individualmente consideradas, nunca podem ser idênticas em absoluto. Dois indivíduos podem sempre ser distinguidos, mesmo se os indivíduos em questão forem mónadas, esferas sem janelas. Isto não vem a propósito de Paulo Portas nem eu vejo televisão. Mas de um niilista sentimental que encontrei numa festa e que se me declarou uma mónada leibniziana, aparentemente indistinguível de uma nómada liliputiana, não fora o PII (Princípio da Identidade dos Indiscerníveis).

05 dezembro 2006

Bom senso e alguma ignorância

Na sua recensão lombadística o professor Marcelo atribuiu a cidadania turca à romena Golgona Anghel, autora da recente biografia de Al Berto. O professor Marcelo mostrou-se bem informado sobre as circunstâncias da morte do espião Litvinenko, e não confundiu, ao contrário de Maria Flor Pedroso, o polónio 210- co-produto, com o talio 206, do decaimento do bismuto 210- com o plutónio, o segundo elemento transuraniano.







Litvinenko, como Politkovskaia, foram executados porque sabiam demais. A imprecisão do professor Marcelo deve ser vista à luz da nova situação criada pelo assassinato de Litvinenko. Os avisados intelectuais do Ocidente têm agora, para lá do bom senso que lhes permita autocensurar as formas de expressão eventualmente chocantes para culturas mais sensíveis, menos laicizadas, evitar o alarde de sabedoria, cometer pequenos lapsos que sugiram ignorância.

04 dezembro 2006

O Papa na Mesquita Azul

Virados para Meca mas sem ajoelhar. Rezando. Ou meditando, uma coisa que todos podemos fazer. Assim vimos os corifeus das duas grandes religiões monoteístas, as mais mortíferas. E no fim, sorriam, coisa boa.
Não sabemos de que falaram, se falaram. Ou o que disseram os que por eles falaram. Dizem que BentoXVI procurava o apoio do Islão para o seu grande objectivo, contrariar a laicização do Ocidente. Mas isso que importa. A imagem fica. Na Mesquita Azul o homem de branco é um laico do islamismo. Não faz sentido para ele rezar virado para Meca. Não acredita no Profeta, na revelação, nos ensinamentos do Corão. Não acredita naquele deus. Mas respeita os crentes daquela fé e respeita aquele espaço. Um verdadeiro agnóstico do islamismo, fazendo o que nós, os agnósticos do cristianismo, fazemos nas Igrejas. Soltar o espírito. Como dizia Unamuno e Lodge citou no final de um dos seus melhores romances: Há um momento em que podemos estar juntos, em silêncio. Se os pensamentos se materializassem, veríamos uma nuvem onde se fundiam as dúvidas dos crentes e as certezas dos agnósticos, e essa mistura magnífica é o chão do mundo de tolerância a vir.

Extrudir

Próxima palavra a inserir no léxico e a usar obsessivamente à la Pitta.
Ex: Às segundas feiras fico com o miolo totalmente extrudido.

(enviado por rosaarosa)

Um niilista no Outono

Ontem, um homem disse-me que se sentia um Raskalnikov sentimental. Falava do amor, pelos adultos humanos não consanguíneos, porque me parecia gostar dos filhos, dos pais, do cão em particular e dos animais em geral.
Acreditei nele. E detive-me nos seus olhos tentando fixar o brilho homicida.

03 dezembro 2006

Aluição na Baixa


Implodiu um prédio no centro da cidade, na orla da Baixa. Em tempos, nesse sítio, nas férias grandes, um miúdo aprendeu dactilografia em Teclado Hcesar, exame com prova cronometrada, teclas negras e uso dos dez dedos. E no andar de cima havia o consultório de um dentista de voz bondosa, broca sibilante e desconhecimento absoluto da analgesia. Agora o prédio inclinou-se para uma rua escura que ladeia a traseira das imponentes construções da Visconde da Luz e, como escreveu a jornalista que regista a implacável decadência da cidade, aluiu.
Ninguém ficou ferido. Um milagre, diz-se.
Mas quem poderia ficar ferido, quando um prédio alui, na Baixa da cidade? Os operários que procediam a obras de reparação no interior do edifício em derrocada, saíram a tempo, aos gritos. Mostraram uma capacidade de diagnóstico e previsão que deve ter feito inveja aos técnicos da Câmara, responsáveis pela vistoria da semana anterior. A única moradora fora evacuada uns dias antes (e instalada onde a Segurança Social, a pedido da Protecção Civil determinou). Uma retrosaria estava aberta nas redondezas e um bar também. Mas ninguém circulava nas ruas, há muito tempo que a retrosaria não tem clientes e o bar abre mais tarde.
O que resta da Baixa de Coimbra, as ruas que saem da Praça Velha para a Portagem, a Estação e o Bota Abaixo, a rua que liga Sansão ao Terreiro da Erva, são veias onde não corre nenhum sangue. Os moradores que restam esperam pela Segurança Social, o camartelo ou o aluimento. Há um comércio residual, umas tascas que vivem dos jantares dos estudantes, o salão dos Horrores, o Príncipezinho muitos anos depois da raposa ter ido à vida. Só a casa do Zé Neto mantém a dignidade da açorda com petinga e joaquinzinhos. Há, claro, um Programa de Recuperação, animado por pessoas estimáveis e os funerários do costume. Mas a Baixa está morta. Ninguém, por milagre, ouvirá os aluimentos que se seguem. Os braços dementes da cidade sem centro crescem agora junto ao Estádio e aos Hospitais, no antigo planalto da Guarda Inglesa, na Portela, nos retails do subúrbio.

01 dezembro 2006



Foto: DrGica

O Primeiro de Dezembro



Partimos cedinho de Coimbra B. Não tão cedo como combináramos que o Tomás nunca chega a horas. Ele levava empadas de frango. O Estêvão a toalha branca. O Bonirre a máquina fotográfica, eu o cesto de verga e as bebidas. Parámos na pequena capela pentagonal, onde, na imagem do altar principal, o dragão parecia derrotar S. Jorge. O Ocidente do século V dividia-nos. O Tomás e o Bonirre, partidários da acomodação pacífica, pareciam ignorar Alarico, Radagásio, a devastação da Gália pelos vândalos, as campanhas dos suevos e dos alanos na Península Ibérica. Depois, quando já se sentia a maresia, o Estêvão introduziu o tema da ausência de imaginação das mulheres escritoras, cujas personagens parecem ser sempre duplos de si próprias. O Estêvão tinha um reduzido, mas convincente leque de exemplos, para lá de uma indesmentível experiência pessoal. Nada literária. Pouco dado a angústias, o Bonirre demonstrava, como sempre, um apetite contagioso. Não fotografava mas comia. O Tomás só se lembrava do José Rodrigues Miguéis. Como tínhamos deixado de fumar estávamos insaciáveis. O Estêvão resmungava sobre a inutilidade da toalha branca, embora o fardo do cesto fosse carregado por mim. Quando chegámos à ponte, ao mar aberto, às bebidas, tinham-se acabado as empadas, e no percurso, protestou o Tomás, tinha-se também perdido o significado da Restauração.